Mecanismos necessários à aplicação do microssistema de precedentes judiciais imposto pelo Código de Processo Civil

Código de Processo Civil atual trouxe em dentre seus artigos a previsão de um microssistema de precedentes judiciais a partir de decisões ou enunciados, indicados nos incisos do art. 927, os quais os juízes e tribunais deverão observar no momento de proferirem suas decisões em casos concretos.

São estas hipóteses de precedentes judicias previstas nos incisos do art. 927 do Código de Processo Civil:

I – As decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II – Os enunciados de súmula vinculante;

III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV – Os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; [1]

A doutrina compreende que este rol expresso no Art. 927 do Código de Processo Civil de 2015 é puramente exemplificativo, existindo outros dispositivos legais que estabelecem outras hipóteses em que os Tribunais e juízes deverão observar e estarão vinculados, é o caso por exemplo dos enunciados de súmula editados pelo próprio Tribunal que julga a demanda. Tal questão encontra-se expressa no Art. 332 do Código de Processo Civil, que trata da improcedência liminar de demandas quando contrariarem determinadas decisões, é possível verificar inclusive que os incisos I ao III muito se assemelham com os incisos do art. 927 do Código de Processo Civil de 2015, entretanto, o inciso IV inova ao disciplinar a hipótese de enunciado de súmula do Tribunal de Justiça local. A este respeito, conclui Marinoni:

Portanto, o art. 927 do CPC/2015, além de desnecessário, tem caráter meramente exemplificativo. À parte das súmulas – que obviamente não são precedentes e só existem por terem que ser respeitadas –, decisões lembradas nos seus incs. I e III estão situadas entre os precedentes das Cortes Supremas. Precedente é gênero, que obviamente encarta os precedentes firmados em controle concentrado (art. 927I, do CPC/2015) e os precedentes estabelecidos em “julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos” (art. 927III, do CPC/2015). Já as decisões proferidas nos incidentes de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas – deixando-se de lado, por enquanto, a questão da ilegitimidade constitucional das decisões que prejudicam os que não participaram –, deveriam ser observadas em razão de sua natureza erga omnes.

Significa que a norma do art. 927 consiste apenas na lembrança de alguns precedentes, além de súmulas e controversas decisões tomadas em incidentes de natureza erga omnes, que deverão ser observados pelos juízes e tribunais.[2]

Em que pese o entendimento doutrinário supramencionado, especialmente quais sejam as decisões judiciais que deverão ser vistas como precedentes judiciais e consequentemente atribuírem eficácia normativa ou persuasiva, o que importa ao presente artigo são os mecanismos que deverão os operadores do direito estarem atentos com a adoção ao nosso direito de origem romano-germânica e pautado na tradição civil law, de um sistema de precedentes judicias e de conceitos de origem no direito inglês, berço da tradição common law.

Assim, estes conceitos mencionados, referem-se aos aqui tratados mecanismos, os quais deverão acostumar-se os operadores do direito às suas utilizações, uma vez que muito embora desde a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015 estejam os juízes e tribunais obrigados a observarem os precedentes judicias elaborados pelo Tribunal a qual estejam vinculados, além daqueles precedentes judicias oriundo de decisões proferidas pelas Cortes Supremas, é preciso se ter em mente que a atividade jurisdicional desenvolvida pelos magistrados não passará a ser engessada, muito pelo contrário, é justamente mediante a utilização destes conceitos que será a não utilização de um precedente judicial, bem como, sua superação.

Desta forma, assim como o Código de Processo Civil prevê expressamente um microssistema de precedentes judicias com o art. 927, e ainda, estabelece o dever dos tribunais em manterem a sua jurisprudência uniforme, estável, integra e coerente através do art. 926 do Código de Processo Civil, é possível verificar a existência de dispositivos que possibilitam aos juízes e tribunais a adoção de mecanismos para que ao se depararem com um precedente que necessite de modificação ou que não possua mais aplicabilidade na sociedade, seja possível sua revogação ou a sua não aplicação em razão da distinção entre o caso concreto e o paradigma invocado.

Assim, primeiramente de grande valia nos atermos ao conceito de distinguishing, conceito advindo da tradição common law, o qual compreende-se como sendo a distinção entre o caso sob julgamento e o provável precedente, almejando verificar, como expõe Didier, se existem “traços peculiares que o aproximem ou afastem dos casos anteriores”, resultando ou não na subordinação entre o precedente e o caso concreto, modo que não fique o juiz ou tribunal restrito a aplicar o precedente judicial invocado sem a devida interpretação.[3]

Neste momento caberá ao juiz ou tribunal não apenas analisar as questões fáticas envolvidas entre os casos para verificar a aplicabilidade ou subordinação entre os mesmos e simplesmente deixar de aplicá-lo porque assim entende, é necessário que este após a análise realizada profira decisão devidamente argumentada com motivos que justifiquem a não aplicação. Assim, o termo distinguishing se caracteriza por um método de comparação e interpretação, necessário para que o juiz ou tribunal deixe de aplicar o precedente judicial invocado, assim conclui Marinoni

Diferenças fáticas entre casos, portanto, nem sempre são suficientes para se concluir pela inaplicabilidade do precedente. Fatos não fundamentais ou irrelevantes não tornam casos desiguais. Para realizar o distinguishing, não basta ao juiz apontar fatos diferentes. Cabe-lhe argumentar para demonstrar que a distinção é material, e que, portanto, há justificativa para não se aplicar o precedente. Ou seja, não é nenhuma distinção que justifica o distinguishing. A distinção fática deve revelar uma justificativa conveniente, capaz de permitir o isolamento do caso sob julgamento em face do precedente.[4]

Por conseguinte, após a realização do distinguishing, verificando-se que o precedente judicial não é aplicável ao caso concreto, poderá o juiz ou tribunal deixar de aplicá-lo, porém deve ser bem fundamentado. É possível que em determinadas situações, após a realização do distinguishing, verifique-se que muito embora as situações fáticas encontradas no o caso que originou o precedente e o caso concreto se amoldem o precedente judicial invocado demonstre a necessidade ser superado em razão da evolução da sociedade em que este esteja inserido, não justificando a sua preservação. Para tal superação dá-se o nome de overruling.

Marinoni esclarece a necessidade de superação de um precedente judicial será observada a partir do momento em que este deixe de corresponder aos dois padrões, sendo eles o da congruência social e a consistência sistêmica. No que se refere a deixar de corresponder à congruência social o autor descreve que acontecerá a partir do momento em que o precedente judicial passar negar proposições morais, compreendidas como aquelas que determinem uma conduta tida como certa a partir de um consenso moral geral da sociedade; negar preposições políticas, compreendidas por sua vez como boas para a sociedade como um todo; e por fim, proposições de experiência, as quais compreendem-se naquelas que dizem respeito ao modo como o mundo de fato funciona. No tocante a consistência sistêmica o autor descreve que o precedente judicial demonstra a sua necessidade de revogação sempre que deixar de se mostrar coerente ou até mesmo contrário com as demais decisões proferidas pelo tribunal.[5]

Superada esta fase conceitual, necessária a identificação de tais conceitos no Código de Processo Civil vigente, sendo que com relação ao distinguishing é facilmente identificado no inciso VI do § 1º do art. 489:

Art. 489 São elementos essenciais da sentença:

(…)

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

(…)

VI – Deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.[6]

Desta forma, por força do que dispõe o supramencionado inciso existe a necessidade de o juiz ou tribunal demonstrar justificativa pela não aplicação de enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte. Neste ponto, é possível concluir que a distinção aplicada pelo legislador brasileiro, nada mais é do que o distinguishing utilizado nos países de tradição commum law.

Assim, será necessário que o juiz ou tribunal fundamente a decisão judicial que deixará de aplicar qualquer uma das decisões descritas no inciso VI do diploma legal supramencionado, sob pena de nulidade da decisão proferida, fundamentando com os motivos que demonstram a distinção entre o precedente invocado e o caso sob julgamento, permitindo assim que seja adotada decisão distinta entre as demandas.[7] No tocante ao distinguishing previsto pelo legislador brasileiro, o FPPC cuidou de apresentar dois enunciados acerca do tema:

174. (art. 1.037, § 9º) A realização da distinção compete a qualquer órgão jurisdicional, independentemente da origem do precedente invocado. (Grupo: Precedentes)[8]

306. (art. 489, § 1º, VI). O precedente vinculante não será seguido quando o juiz ou tribunal distinguir o caso sob julgamento, demonstrando, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta, a impor solução jurídica diversa. (Grupo: Precedentes)[9]

Já no tocante se refere ao overruling, o qual caracteriza a superação do precedente, resultando em sua revogação, seria o mecanismo capaz de impedir que existisse o engessamento do direito, permitindo que os precedentes possam estar atualizados e adequados ao momento em que vive a sociedade ao qual este pertence. A sua previsão encontra-se definida no §§ 2º a  do Art. 927 do Código de Processo Civil

Art. 927.

§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.[10]

E mais, é certo que a Lei nº 11.417/2006 a qual regula o procedimento que regula a edição, revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal poderá ser utilizada por analogia para realização do overruling no que se referem as demais teses consideradas como sendo precedentes judiciais pelo Código de Processo Civil.

Novamente, reiterasse que a adoção de um sistema de precedentes não resulta em um sistema jurídico engessado, sem que seja possível a superação de entendimentos já consolidados. Deveras, o que demonstra o sistema de precedentes adotado pelo Código de Processo Civil é uma preocupação com a forma como ocorrerá a superação deste entendimento, sempre aliado a estabilidade e principalmente, levando em consideração a igualdade e a confiança justificada, para que a superação do precedente não ocorra de forma prematura.[11]

Da mesma forma que se impõe a decisão de distinção entre um provável precedente e o caso sob julgamento, a decisão que implicará na superação de um precedente judicial impõe argumentos ainda mais minuciosos[12], ao passo em que tal decisão irá afasta definitivamente o precedente judicial. Assim, será possível que ocorra a superação do precedente judicial ou da jurisprudência dominante de acordo com o tempo, sempre garantindo o interesse social e a segurança jurídica pelos juízes e tribunais. Veja-se a este respeito o que diz o enunciado nº 322 do FPPC acerca da superação do entendimento anteriormente firmado pelo tribunal pelo:

322. (art. 927, § 4º). A modificação de precedente vinculante poderá fundar-se, entre outros motivos, na revogação ou modificação da lei em que ele se baseou, ou em alteração econômica, política, cultural ou social referente à matéria decidida. (Grupo: Precedentes)[13]

Primeiramente, é possível verificarmos a classificação da técnica de superação do precedente de duas formas: i) expressa (express overruling) e ii) tácita ou implícita (implied overruling). Na primeira hipótese como o próprio nome já esclarece, acontece a revogação do precedente expressamente, podendo inclusive o tribunal adotar novo precedente. No tocante a segunda hipótese, o tribunal não irá revogar expressamente o precedente existente, todavia, o tribunal adota entendimento divergente daquele que fora adotado no precedente. Ressalta-se que a técnica de superação tácita ou implícita não é aceita pelo Código de Processo Civil brasileiro, tendo em visto a expressa imposição do dever de fundamentação em caso de uma superação do precedente judicial, conforme consta no Art. 927§ 4º do referido código.[14] Didier esclarece ainda, que será possível encontrar no sistema jurídico brasileiro a possibilidade de superação de forma difusa e concentrada:

overruling realizado difusamente pode ocorrer em qualquer processo que chegando ao tribunal, permita a superação do precedente anterior. Ele é a regra entre nós, tradicional no commom law, e traz a grande vantagem de permitir que qualquer pessoa possa contribuir para a revisão de um entendimento jurisprudencial. No Brasil, porém, o overruling pode dar-se de modo concentrado. Instaura-se um procedimento autônomo, cujo objetivo é a revisão de um entendimento já consolidado no tribunal.[15]

Deste modo, o overruling de maneira difusa ocorrerá no momento em que o tribunal ou juiz deixar de aplicar ao caso em julgamento um determinado precedente, hipóteses em que os tribunais estarão obrigados a observar o disposto nos §§ 2º a  do Art. 927 do Código de Processo Civil. Já no âmbito do overruling de maneira concentrado, este se dará na forma imposta pelo Art. 986 do Código de Processo Civil, em que o Tribunal irá analisar o pedido de revisão de uma determinada tese firmada em incidente de resolução de demandas repetitivas, ou ainda, na forma do Art.  da Lei 11.417/2006, momento em que haverá o julgamento ao pedido de revisão ou cancelamento de súmula vinculante:

Art. 986. A revisão da tese jurídica firmada no incidente far-se-á pelo mesmo tribunal, de ofício ou mediante requerimento dos legitimados mencionados no art. 977, inciso III.[16]

Art. 2o O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista nesta Lei.[17]

Verifica-se, que no âmbito do overruling de maneira concentrado, o processo de superação do precedente se dará através de procedimento específico, sendo certo ainda que existe uma relação de entes que serão legitimados para propor a revisão ou cancelamento destes, não sendo possível que em qualquer processo ou que qualquer pessoa solicite tal superação, por força do que impõe o Art. 986 do Código de Processo Civil, com relação a superação em incidente de resolução de demandas repetitivas ser possível mediante requerimento dos legitimados no Art. 977, inciso III do mesmo código, desta forma apenas pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública; e no caso das súmulas vinculantes apenas os legitimados elencados no Art.  da Lei 11.417/2006.

No que se refere ao overruling, necessário tecer alguns comentários quanto aos efeitos da decisão de superação do precedente judicial. Constata-se que é grande a divergência doutrinaria a este tema, levantando-se a questão se seria possível a decisão tomada, seja em um processo que entenda pela superação do enunciado sumular seja aquela que modificou o entendimento advindo de um incidente de demanda repetitiva, possuiria efeito ex tunc ou efeito ex nunc.

Ocorre que, o próprio § 3º do Art. 927 do Código de Processo Civil traz expressa possibilidade, todavia de forma genérica, de ocorrer a modulação dos efeitos da decisão que altera a jurisprudência dominante dos tribunais superiores, e neste ponto, conforme entendimento de Didier seria perfeitamente possível se estender tal modulação igualmente aquelas sumuladas, aos precedentes oriundos do julgamento em incidentes repetitivos, bem como aos de assunção de competência, em nome da proteção do interesse social e da segurança jurídica.[18]

Assim, segundo o que dispõe no parágrafo supramencionado, seria possível que o Tribunal no momento em que decide a revogação de um precedente, module os efeitos de tal revogação, permitindo que para as situações já existentes seja valido o precedente judicial revogado, entretanto, ressalvando a mudança no posicionamento para os casos futuros. Didier Jr. ressalva que tal possibilidade de modulação dos efeitos expressa no § 3º do Art. 927 do Código de Processo Civil traz consigo grande problema, tendo em vista a ausência de argumentação que já se mostra padrão nas decisões proferidas

O grande problema e desafio da técnica de modulação de efeitos, seja no Brasil, seja em vários outros países, e a falta de padronização decisória ligada ainda à falta de uma argumentação detalhada nas decisões que modulam ou não as revogações de precedentes. (…) todo esse panorama dificulta a utilização da técnica, gerando, para os jurisdicionandos, um panorama em que os casos em que um posicionamento deve ou não ser modulado seja um tanto quanto lotérico.[19]

Desta forma, novamente se mostra extremamente necessário que os Tribunais e igualmente os juízes no momento que profiram suas decisões, as façam com a devida fundamentação, desta vez levando em consideração a demonstração de que o novo precedente advindo da revogação do precedente anterior seria capaz de surpreender os jurisdicionando que atuaram de boa-fé, o prejuízo pela parte que teve o precedente favorável revogado, a possibilidade de atuação de algum direito fundamental apto a moldar a eficácia temporal do novo precedente e a possibilidade de que a moldagem de situações de transição seja feita pelo Poder Legislativo.[20]

Embora a questão acerca da modulação dos efeitos não esteja pacificada até o presente momento, o critério supramencionado, detalhado por Ravi Peixoto, é o que mais se enquadraria à busca a segurança jurídica que por sua vez caracteriza um dos pilares a adoção de um microssistema de precedentes com o Código de Processo Civil de 2015.

Referência: https://taissouzadireito.jusbrasil.com.br/artigos/939622436/mecanismos-necessarios-a-aplicacao-do-microssistema-de-precedentes-judiciais-imposto-pelo-codigo-de-processo-civil

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Estamos Online!